A composição musical que hoje conhecemos como «Fado Hilário» motiva uma viagem de trás para a frente e de frente para trás, revisitando algumas fontes primárias - partituras impressas e registos sonoros - com interesse para ajudar a esclarecer - com algum detalhe musical e de forma técnica -, a origem do «Fado Hylario Moderno» e as alterações que sofreu.
No fim desta viagem concluiremos, talvez sem surpresa, que esta é, afinal, uma história de alterações em cima de alterações, em que a criação se confunde com reciclagem e deturpação, em que a "traição" - ou a total ausência de preocupação em ser fiel - a melodia, versos e harmonia -, é a "tradição". :)
Antes, e para que se entenda o como e o porquê de algumas operações musicais triviais (matemáticas) - que efectuei valendo-me do software Musescore -, apresento sinteticamente a minha leitura da estrutura, tradicional e característica, que apresentam as composições designadas como «fados» - composições essas que conquistaram cultores (instrumentistas, cantores e compositores) no seio da Academia de Coimbra durante a 2.ª metade do século XIX. Um desses compositores, além de cantor, foi o mítico e imortal Augusto Hylario (da autoria de Hylario conhecem-se apenas 3 ou 4 composições).
No aspecto rítmico, a estrutura destes fados é simples e assenta na repetição de uma célula rítmica, bem definida. Essa célula rítmica, bloco básico na construção destas composições/canções, tem dois compassos e corresponde à música onde encaixa cada um dos 4 versos heptassilábicos de uma quadra. Um verso distribui-se em 2 compassos e, por consequência, uma quadra distribui-se em 8 compassos. Se se repetirem os dísticos (e assim é por tradição: os versos são bisados dois a dois: 1,2,1,2 e 3,4,3,4), a quadra, cantada, ocupa 16 compassos, e a célula rítmica repete-se 8 vezes (este é um modo de descrever uma trivialialidade que é regra em inúmeras canções que utilizam quadras - não só os fados -, mas que, naturalmente, apresenta excepções). A variabilidade nessa estrutura rítmica também existe mas, em várias dezenas/centenas de composições, a estrutura é praticamente fixa e imutável (e quando diferente, regra geral, é imediatamente reconhecível). [não vou neste apontamento abordar, ou tentar descrever, nem sequer em termos gerais, os aspectos melódicos e harmónicos e a diversidade observada, nestes aspectos, nos espécimes conhecidos dentro do reportório de Coimbra].
Análise da estrutura rítmica das composições designadas (com propriedade) fados. |
Objectivo: comparar a melodia do «Fado Serenata», publicado no CMP C.N., e passado para 4/4, com a melodia do Fado Hilário (moderno), gravado, por exemplo (exemplos de referência!), por António Menano e Luiz Goes, e aqui transposto de sol para fá maior (ver as linhas indicadas com *).
Nota: a marcação ou o pulsar da composição musical é o que determina a escolha do compasso para fazer a notação da mesma. As figuras musicais não possuem uma duração fixa. A duração das diferentes figuras musicais (das breves às fusas) é relativa mas proporcional. A duração real dependerá do compasso e do andamento definido (do tempo, expresso em batimentos por minuto - bpm). Duplicando o valor das figuras isso não altera o valor relativo da duração das notas, MAS a notação em 4/4 traduzirá melhor, para o leitor da notação musical, a intenção da marcação da composição.
A estrutura, colocada em evidência, nas composições (nos 4 fados) da autoria de Augusto Hylario ou a ele atribuídas. |
Feita esta apresentação, resumida, da estrutura dos fados, do aspecto (enigmático?) da notação em compasso binário e da sua passagem para quaternário e das transposições, para tornar mais fácil e imediata a comparação das melodias, segue-se o traçar da origem do «Fado Hilário moderno».
No Arquivo Sonoro Digital do Museu do Fado, podemos ouvir duas das primeiras gravações do Fado Hilário (moderno), feitas por Manassés de Lacerda:
1ª - feita em 1905 com acompanhamento de piano, Editora: Gra. 3-62297, 62384: Fado Hylario por Manassés de Lacerda com acompanhamento de piano.
2ª - feita em 1906? (1904-5 segundo Tradisom) com acompanhamento de guitarra, Porto Disco Beka Grande n.º 7373: Fado Hilário por Manassés de Lacerda com acompanhamento de guitarra.
[no Arquivo Sonoro Digital do Museu do Fado estão disponíveis outras gravações do «Fado Hilário». Através desta amostra podemos observar um grande leque de alterações. Cada artista introduzia as suas alterações: na melodia, nas repetições, nas quadras escolhidas e na harmonização... e neste último aspecto assalta-nos a ideia de que o acompanhamento instrumental, o suporte ou colorido harmónico, era feito completamente ad libitum sem quaisquer sentimentos ou obrigações de fidelidade a um rigor musical ou interpretativo, etc.]
Divaldo Gaspar de Freitas foi a primeira pessoa que sublinhou o seguinte: o «Fado Hilário moderno» resultou da junção ou colagem (por simples adição em sequência) de duas composições musicais (fados) da autoria de Augusto Hylario - o «Fado Serenata» e «O último fado» (por esta ordem). [Segundo A. M. Nunes: Divaldo «em Julho de 1988 proferiu no Arquivo da UC uma notável conferência onde demonstrou que Hilário não poderia ter cantado o Fado Hilário Moderno, mas sim o Fado Serenata do Hilário.»]
Augusto Hylario faleceu em 1896. Os dois fados, referidos, terão sido compostos na década de 1890 e foram, ambos, publicados no Cancioneiro de Músicas Populares de César das Neves, editado e vendido em fascículos: o volume I a partir de 1893; o vol. II a partir de 1895 e o vol. III a partir de 1898.
- O «Fado Serenata» foi publicado no Cancioneiro de Músicas Populares, César das Neves, 1893, Vol. I página 280, com o n.º 143 (ver «Fado Serenata» na Galáxia Sonora Coimbrã) e numa Edição da Casa Neuparth & C.ª n.º 97 e 99 da Rua Nova do Almada, Lisboa, «Dedicado ás DAMAS PORTUGUEZAS» | Coimbra 1894 | Música de Augusto Hylario | (Estudante de Medicina).
- O «O último fado» foi publicado no Cancioneiro de Músicas Populares, César das Neves Vol. II, 1895, páginas 102 e 103, com o n.º 215 (por erro tipográfico, saiu 115). «O ultimo fado» na Galáxia Sonora Coimbrã (infere-se que a publicação do fascículo, correspondente, terá acontecido já depois de 1896).
As gravações do «Fado Hilário», feitas por Manassés de Lacerda, datam de 1905 e 1906, e existe uma partitura do «Fado Hylario moderno», editada pela Casa Arthur Barbedo, que corresponde à música e à letra gravada por Manassés de Lacerda com acompanhamento à guitarra. Essa partitura terá sido editada, aproximadamente, em 1906/1907.
O exercício de junção, que levei a cabo, é muito simples. Em primeiro lugar juntei, de forma sequencial, as duas composições tal qual foram escritas e publicadas no C.M.P. C.N.: «Fado Serenata», em Fá maior / Fá menor + «O último fado» em ré menor (que é relativa menor de Fá) e si bemol menor. Em segundo lugar fiz a transposição para Sol maior (etc) e passei para compasso quaternário.
Junção do «Fado Serenata» com «O ultimo Fado», fonte César das Neves, quaternário, Sol maior – Augusto Hylario by adamoc
[É evidente que eu poderia ter transposto a partitura de Arthur Barbedo 1 tom abaixo - para fá maior / fá menor / ré menor / sib menor - o que, para efeito comparativo, iria dar ao mesmo. Optei por subir 1 tom aos "originais" de Hylario e passar para "sol maior / sol menor / mi menor / dó menor" porque, na senda de Artur Paredes e Luiz Goes, existe prática contínua de execução à viola e guitarra com a conformação de sol maior... mas porque estes instrumentos, em Coimbra, são afinados 1 tom abaixo, resulta fá maior o tom real! Idiossincrasias coimbrãs! no entanto, tendo em vista a produção de um arranjo para orquestra e barítono ou tenor, é pertinente referir este detalhe.]
Depois coloquei, lado a lado, para comparação da melodia e harmonia, a partitura resultante das minhas simples operações (matemáticas) e a partitura publicada pela Casa Arthur Barbedo (tal qual foi publicada):
Comparação do «Fado Hylario Moderno» da Casa Arthur Barbedo com a junção dos fados Serenata e Ultimo publicados no César das Neves – Augusto Hylario by adamoc
Conclusões:
A comparação entre a junção que fiz das duas partituras (correspondente a duas composições de A. Hylario) publicadas no Cancioneiro César das Neves e a partitura editada pela Casa Arthur Barbedo, demonstra que as diferenças observadas nas melodias são mínimas e confirma que o Fado Hylario Moderno, na versão de Manassés de Lacerda, é o resultado directo dessa junção das duas composições.
A gravação de Manassés de Lacerda, com acompanhamento de guitarra, corresponde à partitura editada pela Casa Arthur Barbedo (melodia, ritmo, quadras escolhidas e sua sequência, repetições e harmonização).
Para colocar isso em evidência, desci meio tom à gravação (através de edição digital do audio) de Manassés de Lacerda (gravação com acompanhamento de guitarra):
Fado Hylario Moderno por Manassés de Lacerda (guitarra) by adamoc
Imediatamente após a morte de Augusto Hylario, e numa "curta" janela de tempo, balizada entre 1896 e 1905, Manassés, e/ou outros intérpretes, simplesmente juntaram as duas composições (aproveitando o facto de encaixarem directamente numa modulação tom maior/relativa menor) e reutilizaram, a gosto, algumas das quadras que foram publicadas, com as referidas composições, no Cancioneiro de César das Neves. Uma das quadras foi utilizada tal qual o original; uma outra foi modificada/alterada e a intenção invertida! As melodias das composições originais foram, neste caso, respeitadas e foram feitas algumas alterações, ou utilizada alguma liberdade, na harmonização.
Posteriormente, na gravação de António Menano (Lisboa, Odeon A 136808a), feita em 1928 com acompanhamento à guitarra, surge com uma alteração significativa (original de A. Menano?) da melodia em relação à primeira parte (1.º dístico da primeira quadra) do original de «O último fado».
A gravação de Luiz Goes (Madrid, 1957, com António Portugal, Jorge Godinho, Manuel Pepe, Levi Baptista) segue a melodia gravada por António Menano e decalca a harmonia gravada por Artur Paredes (e também a introdução instrumental). (...)
Fado Hilário – Augusto Hylario by adamoc
Relativamente às quadras utilizadas (ou reutilizadas), a escolha de Manassés associou em definitivo duas quadras colhidas em «O último fado». A quadra do "caixão em forma de guitarra" permaneceu imutável, mas em relação à quadra da "capa como mortalha", perpetuou-se essa flagrante deturpação/inversão do sentido da quadra original em que o sujeito poético (Hylario?) afirma, afinal, que NÃO quer a capa por mortalha. Essa quadra, com essa alteração, caiu no goto e para sempre ficou associada ao Fado Hilário. Curiosamente, Augusto Hylario foi sepultado com o uniforme de aspirante a médico naval.
Diario Illustrado, n.º 8.276, ano 25, 5 de Abril de 1896. |
(etc, para continuar...)
A, Caetano, 25 de Setembro de 2023
Eu quero que o meu caixão
Tenha uma forma bizarra
A forma d'um coração
(Ai) A forma d'uma guitarra.
A minha capa velhinha
(Ai) Tem a cor da noite escura
Hei-de nela amortalhar-me
(Ai) Quando for p'ra sepultura.
Já que eu não posso falar
Da minh'alma a dormitar.
Nota: Repetição dos dísticos nas quadras. Ais inseridos de forma irregular.
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