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Meu bem, canção tradicional açoriana

«Meu bem», canção tradicional açoriana

Os estudantes da Universidade de Coimbra trouxeram, das suas regiões de origem, canções tradicionais que depois cantaram em formações Coimbrãs. Várias canções ditas tradicionais (cujas autorias se perderam no tempo) foram mesmo gravadas com outras roupagens harmónicas e instrumentais e editadas comercialmente (Bettencourt, Adriano, José Afonso, Luiz Goes). 

«Meu bem» é um exemplo interessante porque, sendo originalmente uma composição em compasso ternário e andamento lento (uma balada), ela surge nas gravações de Luiz Goes em andamento relativamente lento, mas com compasso quaternário e com o ritmo alterado (e a melodia também foi subtilmente alterada). Estas alterações desaguaram na forma rítmica do fado e, por conseguinte, nesta versão, «Meu bem» é um fado à moda de Coimbra (tal como um «Adeus Sé Velha saudosa»).

 Versão gravada por Luiz Goes («Canção açoreana»):


Compare-se com a célula rítmica dos fados de Coimbra, o modelo em compasso quaternário (que descende do primitivo modelo em compasso binário):

Relembro a célula rítmica do fado, o modelo ou arquétipo primitivo, em compasso binário:

Esta transformação é fácil de concretizar porque a melodia da canção «Meu bem» foi feita, de raiz, para acomodar versos heptassilábicos (quadras em redondilha maior) -- tal como o fado primitivo -- mas não deixa de ser curioso e ligeiramente intrigante... O autor de «Meu bem» provavelmente diria ser isto uma deturpação grosseira da sua composição! Veja-se o início em anacruse... 
 
... mas se olharmos atentamente, para um universo alargado de composições, estas transformações -- deturpações ou "opções estéticas" -- não são casos assim tão isolados (basta pensar nas dezenas de versões jazzísticas de algumas canções, tão revisitadas, que se tornaram "standards do jazz").

A nível mundial, isto de fazer "covers" transformadores (sem conhecimento ou autorização dos autores, e alguns com oposição dos autores) não é uma coisa assim tão moderna e surpreendente. Se a música (quando tecnicamente dominada) nos permite tocar melodias dos Beatles ao estilo de Bach, Haendel e Vivaldi (Beatles go baroque), mais facilmente nos permite este simples afadistamento formal de uma melodia tradicional.

A. Caetano, 3 de Novembro de 2024

*CANÇÃO LONGE
Canção tradicional açoriana que começou por receber arranjo da autoria de António Portugal para uma interpretação de Luis Goes. José Afonso alterou os dois primeiros versos da segunda quadra (Quando o meu amor se foi/ Sete lenços alaguei..) e procedeu à introdução da terceira quadra. Fonte: «A música tradicional na obra de José Afonso», Mário Correia. 

[Sim, mas a melodia é diferente.]

Eis a transformação, o antes (tradicional):

 e o depois (de A. Portugal/Luiz Goes):



A «Canção longe», 1964) com melodia de Carlos de Figueiredo[!?] e acompanhamento de Rui Pato (que surge aqui relacionada por causa da letra, das quadras populares dos Açores), tem esse mesmo ritmo de fado (eu ouço intenção binária), mas com dupla síncopa que é, note-se, outra variação do arquétipo do fado, especialmente útil quando a primeira palavra do verso é proparoxítona ou esdrúxula, para evitar casos de assassinato da prosódia (Mai-la manga da camisa), como acontece caricatamente no «Fado Manassés» («Tra-gú comigo um pecado...») -- coisa perfeitamente contornável com a substituição da entrada em anacruse por uma entrada a tempo e resultando dupla síncopa no mesmo compasso.
 
Eis alguns compassos da «Canção Longe» (transcrição da minha [ir]responsabilidade):



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