É importante perceber que: a
afinação real do instrumento é a mesma (acima indicada no sistema de notação internacional); a digitação resultará a mesma; e dois
guitarristas que tenham aprendido por diferentes convenções de
escrita, ao ler o exemplo acima, cada um no referencial de leitura/escrita que aprendeu, produzirão os mesmo sons e poderão tocar
em uníssono. No exemplo, a música vai-se ouvir no tom de ré maior. Se, neste
caso, trocarem os papéis, temos o caos!... além de um deles encontrar notas “fora da extensão”
e ter dificuldades em encontrar uma digitação exequível, os dois guitarristas estarão
a tocar em tons diferentes (um em fá maior e o outro em si maior).
O conhecimento dos instrumentos transpositores e de todos os importantes pormenores da escrita (isto é, da notação musical) é um assunto quase trivial entre músicos profissionais, especialmente maestros, mas não deixa de ser uma matéria potencialmente muito confusa entre aprendizes. No caso da guitarra portuguesa, olhando em retrospectiva, percebemos que existiram estas opções de escrita/leitura para aprendizagem e actualmente o problema só ocasionalmente se coloca com a Guitarra de Coimbra que tradicionalmente se afina «1 tom abaixo da afinação standard». É claro que, academicamente, já algumas pessoas tiverem o cuidado de esclarecer que na actualidade a Guitarra de Coimbra continua a funcionar como instrumento transpositor afinado em si bemol, e isto é especialmente importante quando um guitarrista de Coimbra, que não abdica da sua afinação (leia-se: tensão nas cordas), tem de tocar com outros instrumentos ou com orquestra e tem de comunicar com outros músicos e maestros/arranjadores/compositores.
De um ponto de vista prático os guitarristas de Coimbra continuaram a fazer o mesmo que João Maria dos Anjos e outros guitarristas fizeram no passado: designam a nota que tocam pelo nome que ela tem na escrita transposta e não na altura real. Por exemplo, hoje em Coimbra chamamos ré à sexta corda quando em rigor tocamos um dó (C3 C4). E quando tocamos um dito "dó", por exemplo, premindo a 1.ª corda no 1.º ponto, ouve-se realmente um si bemol (Bb4), daí que, segundo a antiga regra musical, a Guitarra de Coimbra é um instrumento transpositor em si bemol. Na notação musical (os que a utilizam) escrevemos como se essa afinação (tradicionalmente 1 tom abaixo) "não existisse" pois ninguém especifica "guitarra em si bemol".
No ambiente musical performativo dos (genericamente designados) grupos de fados e guitarradas de Coimbra persiste a prática de afinar os instrumentos 1 tom abaixo do standard. Os violões ou violas baixam 1 tom à afinação e apesar de o instrumento perder brilho no som, considerando que o seu papel é essencialmente de acompanhamento e são mais valorizados os graves assegurados pelos bordões, esta prática - que já tem seguramente 100 anos - persiste na Lusa Atenas. Como é evidente, o facto de o violão acompanhar a guitarra nessa descida de 1 tom, tem a conveniência de permitir a automática comunicação entre os instrumentistas sem exigir exercícios mentais de transposição, mas a perda de tensão nas cordas, em algumas circunstâncias é o desagradável preço a pagar (apesar de existirem encordoamentos de alta tensão). Ainda assim, só extraordinariamente algum executante prefere tocar a sua viola (violão /classical guitar :) ) na afinação standard, obrigando-se depois a fazer rearranjos e outras digitações.
«A guitarra como instrumento transpositor
São instrumentos transpositores os que não afinam o som da nota LÁ pelo diapasão comum.
O arame da 1ª corda da guitarra não resistindo à tensão exigida pelo alamiré, torna-a num instrumento transpositor, pela necessidade de ser afinada mais baixa que os outros instrumentos uma 5ª (três notas).
A viola e o bandolim são instrumentos em Dó; portanto, se afinamos as toeiras (nota Sol) pelo Mi dêstes instrumentos, a guitarra fica em Lá, que é a 3ª inferior de Dó. É esta a regra musical, sendo errada qualquer outra denominação.»
Dois pontos prévios:
1) Definição de instrumento transpositor (fonte:
Wikipedia):
Instrumento transpositor é qualquer instrumento musical que, por qualquer razão, tem suas notas anotadas na partitura em altura diferente daquela que realmente soa. Os instrumentos que soam como escrito são chamados não transpositores.
Para evitar ambiguidades, deve ser indicada, no início da partitura, a tonalidade do instrumento, ou seja, a nota que realmente soa quando se escreve um Dó na partitura.
2) Alamiré ou lamiré – objecto que produz uma frequência de referência para afinar instrumentos musicais, habitualmente o lá (A4) = 440 Hz
Manoel Gomes afirma que se afinarmos as terceiras cordas da guitarra (ditas «toeiras» ou «sol» na afinação nominal do fado corrido) pelo mi agudo do violão (E4)*, a guitarra fica afinada em Lá - isto porque tocando uma nota “dó”, dessa escrita convencionada (transposta), essa nota terá o som, na altura real, de lá.
Manoel Gomes explica, afinal com razoável clareza, que a guitarra funciona como um instrumento transpositor (e neste caso, de acordo com a regra, afina em lá**) porque, nessa data e nesse contexto prático, a escrita musical que se utilizava para a guitarra em afinação de fado corrido, era transposta uma terceira menor acima.
Assim, a afinação real de fado corrido utilizada na guitarra é a mesma até hoje, em algum momento do séc. XX a escrita transposta foi abandonada e a notação musical que é utilizada, há já algumas décadas, corresponde à altura real dos sons produzidos pelas cordas.
[*Anote-se ainda que os guitarristas, valendo-se de um violão afinado, podiam (e podem) também, por exemplo, afinar a 4.ª corda, o bordão, pela 2.ª do violão (B3); ou a 6.ª corda, o bordão, pela 4.ª corda do violão (D3) (Reynaldo Varella documenta, aliás, esta opção de afinação***). E, entre outros métodos, o lamiré ou o diapasão seriam utilizados para afinar as 2.ª e 5.ª cordas finas, etc. Em qualquer caso, a afinação resultante seria, do grave para o agudo: D4 D3 / A4 A3 / B4 B3/ E4 E4 / A4 A4/ B4 B4.
** Mesmo nos métodos observam-se confusões. Por exemplo, Reynaldo Varella, designa a afinação natural transposta uma quinta acima, como «afinação em sol»... claro que na prática essa afinação das cordas soltas (sol si ré sol si ré, do grave para o agudo) produz um acorde de dó maior; e de acordo com a regra, a guitarra como instrumentos transpositor, nesse caso afina em fá. Confuso?
*** R. Varella «Muita
gente lhe chama a este, tom de Ré maior; porém dão-lhe este nome porque afinam
o bordão de toeiras (6.ª corda), pelo ré da viola franceza. D'ahi, supponho eu,
chamarem-lhe ré. Mas, quer acompanhem na viola em tom de ré, de mi ou de sól (o
tom pouco importa), a questão é que a 6.ª corda da guitarra é fá». - Por estas e por outras frases conclui-se que Reynaldo Varella não dominava a compreensão deste assunto. Efectivamente o bordão mais grave da guitarra afina em ré (D3); o nome que Varella e contemporâneos davam à 6.ª corda da guitarra em afinação de fado era fá; e porque neste contexto a escrita transposta é feita uma terceira menor acima, a guitarra afina em lá. Confuso?]
(Tal como João Maria dos Anjos) Reynaldo Varella, Manoel Gomes e outros, também utilizaram esta escrita transposta. E em relação à afinação natural também foi feita, no mesmo período histórico, a opção de escrita transposta, mas neste caso, uma quinta perfeita acima.
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Forma de escrita utilizada por Silva Leite versus João Maria dos Anjos, Reynaldo Varella e outros. Em rigor, em ambos os casos a guitarra funciona como instrumento transpositor: no primeiro caso à oitava e, no segundo caso, uma quinta perfeita acima, ou seja, um dó nominal corresponde a um fá real, e diz-se que, afina em fá. A escrita desta extensão, de 3 oitavas, fica recentrada no pentagrama. |
Ver
Estudo de guitarra, Silva Leite, 1796.
Quanto à razão apontada «O arame da 1ª corda da guitarra não resistindo à tensão exigida pelo alamiré, torna-a num instrumento transpositor» isto não faz sentido. Transparece que Manoel Gomes não faz ideia do porquê da existência de escrita transposta.(!) Parece-me claro que a razão para ser transpositor não é as cordas não aguentarem a tensão ... é o contrário, por terem feito da guitarra um instrumento transpositor, essas afinações virtuais ou nominais, publicadas nos métodos, devem ter causado confusão ... especialmente a quem tentou afinar a guitarra por um piano e começou a partir cordas.
À medida que as guitarras aumentaram a extensão por adição de trastos (passou de 12 para 17), a grande razão/vantagem para o uso de escrita transposta prende-se com economia de escrita e facilidade de leitura, evitando a utilização de demasiadas linhas suplementares, através do reenquadramento da extensão da guitarra no pentagrama (isto seria bom para professores e alunos). Com a adição de mais 5 trastos (+2,5 tons), a guitarra passou depois de 17 para 22 trastos e as vantagens da transposição deixaram de existir. Nesse contexto, a extensão da guitarra (na afinação de fado) fica balizada entre D3 e A6 e a escrita exige "apenas" 4 linhas suplementares inferiores e superiores.
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Afinação e extensão da guitarra portuguesa, em notação no pentagrama: a escrita utilizada actualmente não requer mais do que 4 linhas suplementares (inferiores/superiores). |
Será que a afinação 1 tom abaixo nasceu com Artur Paredes? Talvez não. Reynaldo Varella afirma «afina-se a 4.ª corda, mais fina pelo Ré [gralha, será Lá] do Alamiré ou então numa altura qualquer» ... Bem... afinar "numa altura qualquer" é usar a tensão como o sal, a gosto, mas afinando a 4.ª corda pelo A4 isto gera a "afinação" [1] de Coimbra!
A. Caetano, 17 de Janeiro de 2022
[1] As afinações da guitarra
A afinação hoje mais utilizada na guitarra portuguesa é D3 A3 B3 E4 A4 B4 (e para sermos rigorosos, em Coimbra, é C3 G3 A3 D4 G4 A4, ou seja, um tom abaixo). Podemos/devemos falar de afinações diferentes? Sim e não. Tecnicamente falando, são diferentes, mas uma é uma transposição da outra, ou seja, os intervalos (musicais) relativos entre as notas produzidas pelas cordas são os mesmos, logo, toda e qualquer digitação se mantém. Sabemos que Artur Paredes tocou e gravou com a guitarra afinada mais baixa ainda… Isso traduz-se em diferenças no som? Claro que sim mas para o estrito efeito de baptismo de “afinações diferentes” deveríamos talvez desconsiderar as afinações que mantêm as mesmíssimas relações de intervalos musicais entre as cordas.
[2] A extensão representa todas as notas fisicamente realizáveis. A
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